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domingo, 28 de fevereiro de 2010

 
Pema Chödrön é uma monja budista americana na linhagem de Chögyam Trumgpa, o renomado mestre de meditação tibetana.
É professora residente na Abadia de Gampo, Cape Breton, Nova Escócia, o primeiro monastério budista na América do Norte estabelecido para ocidentais.

- O CANTO DAS QUATRO INCOMENSURÁVEIS -

Que todos os seres sensíveis gozem da felicidade e da raiz da felicidade.
Que estejamos libertos do sofrimento e da raiz do sofrimento.
Que não estejamos apartados da grande felicidade destituída de sofrimento.
Que vivamos na grande equanimidade, livres da paixão, da agressão e do preconceito.

Depende de nós. Podemos passar nossa vida cultivando nossos ressentimentos e anseios ou podemos explorar o caminho do guerreiro – alimentando o desenvolvimento da mente aberta e da coragem. A maioria vive reforçando seus hábitos negativos e, assim, planta as sementes do próprio sofrimento. As práticas do boddhicitta[1], no entanto, são maneiras de plantar as sementes do bem-estar. As práticas de aspiração das quatro qualidades ilimitadas – bondade amorosa, compaixão, júbilo e equanimidade – são especialmente poderosas.
Nessas práticas, começamos próximos de nossa casa: exprimimos o desejo que nós e nossos entes queridos gozemos de felicidade e estejamos livres do sofrimento. Então, gradualmente, ampliamos essa aspiração para incluir um círculo cada vez mais amplo de relacionamentos. Começamos onde estamos, onde sentimos as aspirações como genuínas. Iniciamos por reconhecer onde já sentimos amor, compaixão, júbilo e equanimidade. Localizamos nossa sensação atual dessas quatro qualidades sem fronteiras, por mais limitadas que elas possam estar: em nosso amor pela música, nossa empatia com crianças, na alegria que sentimos ao receber boas notícias ou na equanimidade que sentimos quando estamos entre bons amigos. Mesmo se pensarmos que o que já sentimos é muito pouco, ainda assim, devemos começar com o que temos e alimentar seu desenvolvimento. Não é necessário que seja grandioso.
Cultivar essas quatro qualidades nos garante proteção sobre a nossa experiência atual. Dá-nos compreensão sobre o estado da mente e do coração, no momento presente. Passamos a conhecer os sentimentos de amor, compaixão, júbilo e equanimidade, bem como seus opostos. Aprendemos como alguém se sente quando alguma dessas quatro qualidades está presa e como se sente quando ela está fluindo livremente. Nunca fingimos que sentimos algo que não estamos sentindo. A prática depende da inclusão da totalidade da nossa experiência. Ao nos tornarmos íntimos de como nos fechamos, e de como nos abrimos, despertamos nosso potencial ilimitado.
Apesar de começarmos essa prática desejando que nós mesmos e nossos entes queridos estejamos livres do sofrimento, podemos ter a sensação de estarmos falando algo "da boca para fora". Podemos sentir como falso até mesmo esse desejo compassivo referente aos que nos são mais próximos. Mas, desde que não nos estejamos enganando, esse desejo simulado tem o poder de despertar o boddhicitta1. Apesar de sabermos exatamente o que sentimos, fazemos as aspirações com o objetivo de ultrapassar o que, no momento, nos parece possível. Após praticar para nós mesmos e para os que nos são próximos, vamos mais longe: enviamos boa vontade às pessoas neutras de nossas vidas e, também, às pessoas de quem não gostamos.
Podemos sentir que estamos exagerando e sendo falsos ao dizer, "Que esta pessoa que está me deixando louco goze de felicidade e esteja livre do sofrimento". Provavelmente, o que estamos verdadeiramente sentindo é raiva. Essa prática é como um exercício que força o coração além de suas capacidades atuais. Podemos esperar encontrar resistência. Descobrimos que temos nossos limites: podemos ficar abertos para algumas pessoas, mas permanecemos fechados para outras. Vemos tanto nossa clareza quanto nossa confusão. Estamos aprendendo, em primeira mão, o que qualquer um que tenha trilhado esse caminho já aprendeu: somos todos um paradoxal aglomerado de rico potencial, que consiste tanto em neurose como em sabedoria.
A prática da aspiração é diferente de fazer afirmações. Afirmações são como dizer a você mesmo que você é compassivo e corajoso, para esconder o fato de que, secretamente, você se sente um perdedor. Ao praticar as quatro qualidades ilimitadas, não estamos tentando nos convencer de coisa alguma, nem estamos tentando esconder nossos verdadeiros sentimentos. Estamos expressando nossa vontade de abrir o coração e de nos aproximarmos de nossos medos. A prática da aspiração nos ajuda a fazer isso em relacionamentos cada vez mais difíceis.
Se reconhecermos o amor, a compaixão, o júbilo e a equanimidade que sentimos agora, e os alimentarmos por meio dessas práticas, a expansão dessas qualidades ocorrerá por si só. O despertar das quatro qualidades fornece o calor necessário para que uma força sem limites se manifeste. Elas possuem o poder de afrouxar hábitos inúteis e derreter a rigidez gelada das nossas fixações e defesas. Não estamos nos forçando a sermos bons. Quando vemos o quão frios e agressivos podemos ser, não estamos pedindo que nos arrependamos. Em lugar disso, essas práticas de aspiração desenvolvem nossa capacidade de permanecermos estáveis com nossa experiência, seja ela qual for. Dessa maneira, conseguimos saber a diferença entre uma mente aberta e uma mente fechada, gradualmente desenvolvendo a autoconsciência e a bondade de que necessitamos para podermos beneficiar os outros. Essas práticas desbloqueiam nosso amor e nossa compaixão, nossa alegria e nossa equanimidade, liberando seu ilimitado potencial de expansão.

de "Os Lugares Que Nos Assustam – Um guia para despertar nossa coragem em tempos difíceis" – Pema Chödrön – Editora Sextante – Capítulo 6 – página 51.



[1] Boddhicitta: o sentimento compassivo e determinado de promover somente o bem para todos os seres sem qualquer distinção.

 

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