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terça-feira, 16 de junho de 2009

Dalai Lama, o Buda pop


“É como um astro do rock.” Essa é a resposta imediata que o Dalai Lama dá ao escritor Victor Chan quando questionado por que algumas pessoas, ao vê-lo, se emocionam ao ponto de chorar. “Quando eles (astros do rock) aparecem, algumas pessoas pulam e choram. Semelhante”, compara o Dalai Lama, agitando os braços como se fosse um tiete. Respostas pop como essa fizeram dele um ídolo acessível para multidões. Como boas letras de música, suas idéias são facilmente compreensíveis para adeptos de qualquer credo ou mesmo de nenhum: “Todos os seres vivos são iguais. Todos querem felicidade e não querem sofrer”. O nome já diz a que veio: Dalai Lama significa “Oceano de sabedoria” - o que é perceptível já em seu semblante, sempre inspirador e risonho. Entre os dias 27 e 29 de abril (de 2007) ele estará em São Paulo para dar ensinamentos budistas, falar sobre saúde individual e social e pregar o diálogo inter-religioso. Será sua terceira vinda ao Brasil, agora com 46 livros publicados em português. Sua missão, a de sempre: mostrar que a felicidade não é impossível.


Um Lama encarnado
Dessa forma, o líder espiritual vem cumprindo sua meta - não a de trazer adeptos ao budismo, mas a de tornar a terra um lugar mais fácil de viver. Rezar, para ele, não basta. O que o 14º Dalai Lama diz é que é preciso engajamento e determinação para qualquer transformação social e espiritual. “Antes de mais nada, temos que aprender como as emoções e comportamentos negativos nos são prejudiciais – para a sociedade e para o futuro também – e como as emoções positivas são benéficas”,diz ele.

Dalai Lama nasceu Lhamo Thondup em 1935 no vilarejo de Takster, próximo a fronteira da China com o Tibete. Seu pai, “um homem cuja extrema bondade convivia com um temperamento irascível”, era um camponês apaixonado por cavalos. Durante os meses de sua gestação, ele permaneceu gravemente enfermo até a manhã em que seu filho nasceu quando acordou sentindo perfeitamente curado. Foi também a partir desse nascimento auspicioso que um período de quatro anos de colheitas desastrosas em Takster chegou ao fim. Esses dois fatos são considerados sinais, segundo superstições tibetanas, de que haveria o renascimento de um graduado lama (um sacerdote budista) encarnado.

Sua descoberta não se deu por acaso. Depois da morte do13º Dalai Lama, em 1933, iniciaram-se as buscas pela sua reencarnação, algo comum na tradição budista. Em um lago sagrado próximo a Lhasa, um regente, indicado pela Assembléia Nacional para governar o Tibete até que a reencarnação atingisse a maturidade, teve visões que apontavam Takster. Uma missão foi enviada para o vilarejo, entre eles o Lama Kewtsang Rinpoche, do mosteiro de Sera, que chegou a casa de Lhamo Thondup disfarçado de criado. Ele foi prontamente reconhecido por Lhamo Thondup, então uma criança de 2 anos . “Sera – aga”,disse ele para o criado: “Você é um lama de Sera”. Lhamo também reconheceu o mala (rosário tibetano) que o criado disfarçado trazia no pescoço: “É meu”, disse, apontando para o mala que havia pertencido ao 13º Dalai Lama. É comum, segundo o budismo, crianças reencarnadas lembrarem de seus objetos e pessoas de suas vidas passadas, e esses foram só alguns dos sinais que fizeram Lhamo Thondup ser reconhecido como o 14º Dalai Lama. Aos 4 anos, foi transferido com a família para Lhasa. No palácio de Potala foi iniciado monge e assumiu o extenso nome de Jamphei Ngawang Lobsang Yeshe Tenzin Gyatso.

Segundo o budismo, o primeiro Dalai Lama nascido no ano 1391 da era cristã, era uma encarnação de Chenresi, o Buda da Compaixão. Cada Dalai Lama é uma reencarnação de seu antecessor e a ele cabe o governo espiritual e temporal do Tibete. Na forma atual de governo, chamada Gaden-Phodrang, Dalai Lamas se sucedem na liderança e, durante sua ausência ou menoridade, o Tibete é conduzido por regentes monges e leigos.

A partir daí, Tenzin Gyatso usaria roupas de monge, cabelo raspado, se comprometeria ao celibato e estaria proibido de comer a noite, entre outras restrições comuns a todos os monges – apesar de confessar que se dá o direito a alguns biscoitos depois do pôr-do-sol, quando a fome é grande. Sua educação incluiu lógica, arte e cultura tibetana, sânscrito, medicina e filosofia budista. Além das disciplinas curriculares, procurava conhecer mais sobre o mundo e foi daquelas crianças que adoram desmontar brinquedos, sempre um fascinado por objetos mecânicos. Ganhou um projetor de cinema a manivela e ao demonstrá-lo descobriu as baterias que alimentavam sua luz elétrica: “Foi meu primeiro contato com a eletricidade e sozinho descobri como fazê-lo funcionar novamente”.

Luta pela paz
Em 1950, a China comunista decidiu tomar do Tibete a independência obtida em 1912 para fazê-lo retornar aos domínios da República Popular da China. Tal fato fez com que fosse empossado Dalai Lama antes de sua maioridade, aos 16 anos. Seu primeiro ato foi declarar anistia a todos os presos. “Ser Dalai Lama é um cargo instituído pelos homens. Eu me considero apenas um simples monge.” Aos 24 anos, prestou com louvor os exames conclusivos de sua educação monástica – pouco antes de ser obrigado a se disfarçar de soldado chinês para fugir com duas mudas de roupas de monge na bagagem para a Índia, em 1959. Desde então, há 46 anos, o simples monge líder do povo tibetano vive exilado em Dharamsala, cidade ao norte da Índia.
“Cresci conhecendo muito pouco o que se passava no mundo, e foi nessas condições que, aos 16 aos, tive que liderar meu país contra a invasão da China comunista.” Educado sob disciplina rigorosa, Tenzi Gyatso afirma que “não foi uma infância infeliz”, e é grato à benevolência de seus professores, que lhe proporcionaram todo o conhecimento religioso e “fizeram o possível para satisfazer sua curiosidade saudável por outros assuntos”. Frente à China comunista, Dalai Lama optou pela não-violência e a propaga até hoje. “Os princípios de compaixão e não-violência do Dalai Lama dão forma à sua visão global”, explica o professor Victor Chan, que conviveu com Sua Santidade para escrever o livro A Sabedoria do Perdão.

Em decorrência de a China ter invadido o Tibete com 80 mil homens – contra os 8500 do exército local -, aproximadamente 1,2 milhão de tibetanos (de uma população de 6 milhões) morreram e 6400 mosteiros (99,9% do total) foram destruídos. Mesmo assim, o Dalai Lama não gosta de propagar a violência infligida pelos chineses. Considera os inimigos professores valiosos que podem provocar o desafio necessário para cultivar qualidades como compaixão e perdão. “Sou otimista. A China está mudando. E o que eu peço não é a separação da China, mas uma aproximação pelo caminho do meio: manter o vínculo econômico com a República Popular da China, ao mesmo tempo em que o Tibete possua autonomia completa e governo próprio.”
Seu reconhecimento veio com o Prêmio Nobel da Paz, em 1989, promovendo uma tomada de conhecimento mundial para a causa do Tibete. O comitê justificou o prêmio citando sua defesa de “situações pacíficas baseadas na tolerância e respeito mútuo a fim de preservar a herança histórica e cultural de seu povo”.

A serviço da compaixão
Uma gargalhada gostosa é sua marca registrada. E o espírito brincalhão é uma característica que o Dalai Lama justifica ser proveniente do jeito de ser do povo tibetano. Ao longo do último meio século, não há um dia sequer em que ele deixe de meditar sobre a compaixão. “Descobri que o mais alto grau de paz interior decorre da prática do amor e da compaixão. Quanto mais nos importamos com a felicidade de nossos semelhantes, maior o nosso próprio bem-estar. Essa é a principal fonte da felicidade”. Ele acredita ser o primeiro beneficiado ao lutar pela felicidade dos outros.

Quando não está viajando, seu dia começa às 3h30. Meditações e preces são feitas até o horário do almoço. A cozinha em Dharamsala é vegetariana, mas o Dalai Lama nem sempre segue a dieta. A parte da tarde é reservada para audiências e entrevistas. Um chá é servido às 18h, com direito a alguns biscoitos. Até as 20h30, quando se recolhe para dormir, faz suas orações da noite. Essa é a rotina que fornece a base para seus três compromissos em vida.
Primeiro, ele se dedica a promover valores como compaixão, perdão, tolerância, contentamento e auto-disciplina para todos os seres. Para ele, esses são os valores de uma ética para o novo milênio. Depois, sua preocupação é com a integridade de todas as maiores tradições religiosas, acreditando que, apesar das diferenças, todas elas tem potencial para promover o bem-estar dos seres humanos. Esse, aliás, é um dos temas de sua visita ao Brasil, em palestra gratuita a se realizar na Catedral da Sé. Por fim, seu terceiro compromisso, com o povo tibetano, é o único que poderá acabar, caso uma solução mutuamente boa para o Tibete e a China seja alcançada. E tudo isso sempre com seu indefectível sorriso estampado no rosto.


(Por Francesca Sperb, publicado na revista Vida Simples - ilustração de Artur Lopes)