Dilgo Khyentse Rinpoche
Como o samsara se manifesta? O que quer que percebamos ao nosso redor com nossos cinco sentidos, todos os tipos de sentimentos de relação e repulsão, se formam em nossa mente. Não são as percepções em si que nos mantém no ciclo de existências, mas sim o modo pelo qual reagimos a elas e o modo pelo qual as interpretamos. É nisso que o Vajrayana nos dá meios extraordinários para não perpetuar o samsara: ele nos mostra como perceber os fenômenos como sendo a exibição pura da sabedoria.
O ódio ou a raiva que possamos sentir por alguém não são inerentes àquela pessoa. Eles existem apenas em nossa mente. Assim que vemos o nosso inimigo, nossos pensamentos se fixam na memória do mal que ele nos fez, em seus ataques presentes e naqueles que poderá fazer no futuro. Tornamo-nos irritados a ponto de não sermos mais capazes de suportar o som de seu nome. Quanto mais liberdade damos a estes pensamentos, mais a raiva irá nos invadir e, com ela, a vontade irresistível de pegar uma pedra para lhe jogar, ou de um bastão para lhe bater. Deste modo, um simples instante de raiva nos conduz ao paradoxo do ódio.
O ódio parece muito poderoso para vocês, mas de onde ele tira o poder de dominá-los a esse ponto? É uma força externa, com braços e pernas, armas e guerreiros? Ou é uma força interna, que está dentro de vocês? Se esse for o caso, vocês podem identificá-la em seu cérebro, em seu coração, ou em alguma parte de vocês?
Apesar de ser impossível de localizá-lo, o ódio parece ter uma presença muito concreta que tende a amarrar a mente, a solidificá-la, e desse modo desatrelar todo um processo de sofrimento para vocês e para os outros. Assim como as nuvens que, apesar de serem insubstanciais para suportar o menor peso, podem encobrir o céu e o sol, do mesmo modo os pensamentos podem obscurecer o brilho da consciência iluminada. Reconheçam a vacuidade da mente, sua transparência, e ela retornará por si mesma ao seu estado natural de liberdade. Reconheça a vacuidade do ódio e ele perderá seu poder de fazer o mal. Ele se tornará a sabedoria que é como o espelho.
Quando falamos da ignorância, nos referimos ao fato de que não estamos conscientes de nossa natureza de Buddha. Comportamo-nos como um mendigo que possui uma jóia preciosa, mas a joga fora porque não sabe do seu valor. É por causa da ignorância que não acreditamos no karma, nas conseqüências inevitáveis de nossos atos. Congelados pela ignorância, falhamos em reconhecer a vacuidade e persistimos em acreditar na realidade dos fenômenos. Esta crença é a fonte de todas as percepções ilusórias e é a raiz das oitenta e quatro mil emoções negativas.
Porém, ao contrário das trevas de uma caverna subterrânea, escondida da luz solar, a ignorância não é eterna. Como qualquer fenômeno, ela pode emergir apenas da vacuidade e não tem existência independente. Uma vez que vocês tenham reconhecido sua verdadeira natureza, a vacuidade, a ignorância se transforma na sabedoria da dimensão absoluta.
Deixados por si mesmos, os pensamentos criam o ciclo das existências. Na ausência de exame crítico, eles retêm sua realidade aparente, perpetuando o samsara com uma força que aumenta cada vez mais. Porém, nenhum deles, seja bom ou ruim, possui a menor realidade tangível. Todos, sem exceção, são inteiramente vazios, como arco-íris, imateriais e intocáveis. Nada pode alterar a natureza de Buda, mesmo quando os véus superficiais a escondem de nossa visão.
Os pensamentos são o jogo da consciência. Eles surgem nela e se dissolvem nela. Se reconhecermos que esta consciência está na própria origem dos pensamentos, deveremos compreender que os pensamentos nunca começaram, continuaram ou deixaram de existir. Neste ponto, os pensamentos são incapazes de perturbar a mente.
Enquanto corrermos atrás de nossos pensamentos, seremos como o cachorro que corre atrás de uma pedra; não importa quantas pedras joguemos, ele correrá atrás delas a toda hora. Porém, se olharmos para a consciência, que está na origem de todos os pensamentos, cada pensamento surgirá e se dissolverá dentro do espaço dessa consciência, sem gerar outros pensamentos. Deste modo, seremos como um leão, que não corre atrás da pedra, mas sim atrás daquele que a jogou... E só se joga uma pedra em um leão!
Para conquistar a cidadela não-criada da natureza da mente, devemos ir à fonte e reconhecer a origem dos pensamentos. De outro modo, um pensamento dará origem a um segundo, então a um terceiro e assim por diante. Assim, estamos constantemente obcecados pelas memórias do passado, antecipamos o futuro e perdemos a consciência do momento presente.
Vamos preservar o estado da simplicidade. Se experimentarmos felicidade, sucesso, abundância e outras condições favoráveis, devemos considerá-las como sonhos, ilusões, e não nos apegarmos a elas. Se formos golpeados pela doença, calúnia, destituição ou por outras provações físicas ou morais, devemos evitar ficar desencorajados, mas devemos reavivar nossa compaixão e desejar que os sofrimentos de todos os seres esgotem-se pelo nosso sofrimento. Então, em todas as circunstâncias, sem cair nos estados de euforia ou desespero, vamos permanecer livres, à vontade, desfrutando da serenidade imperturbável.
Se a nossa mente, for livre do passado e do futuro, e repousar em um estado de consciência clara, sem ser atraída por objetos externos ou preocupar-se com elaborações mentais, ela ficará na simplicidade primordial. Neste estado, a mão de ferro da vigilância forçada não tem a necessidade de imobilizar os pensamentos. Diz-se que “o estado de Buda é a simplicidade natural da mente”. Uma vez que tenhamos esta simplicidade, devemos preservá-la com uma atenção livre de esforço. Devemos assim desfrutar da liberdade interior, dentro da qual é desnecessário bloquear os pensamentos ou temer que eles interrompam a meditação.
O estado de Buda parece ser uma meta distante, virtualmente fora de nosso alcance. Porém, a vacuidade natural de nossa mente é o Corpo Absoluto (Dharmakaya), sua expressão luminosa é o Corpo do Êxtase Perfeito (Sambhogakaya), a compaixão universal que emana dele é o Corpo Manifesto (Nirmanakaya), e a unidade intrínseca destes três corpos é o Corpo Essencial. Estes quatro corpos do Buda, ou kayas, sempre estiveram presentes em nós; é apenas por ignorar a sua presença que os consideramos como sendo uma meta externa.
“Minha meditação está correta? Quando farei progresso? Jamais atingirei o nível de meu mestre espiritual”. Dividida entre a esperança e a dúvida, nossa mente nunca está em paz. Conforme o nosso humor, um dia praticamos intensamente e, no dia seguinte, nem tanto. Somos apegados às experiências agradáveis que emergem do estado de calma mental e desejamos abandonar a meditação quando falhamos em tentar reduzir o fluxo dos pensamentos. Esse não é o modo correto de praticar.
Qualquer que seja o estado em que nossos pensamentos estejam devemos nos aplicar constantemente à prática regular, dia após dia, observando o movimento de nossos pensamentos e voltando até a origem deles. Não devemos esperar ser imediatamente capazes de manter, dia e noite, o fluxo de nossa concentração. Quando começamos a meditar sobre a natureza da mente, é preferível fazer sessões curtas de meditação, várias vezes por dia. Com perseverança, realizamos progressivamente a natureza de nossa mente, e essa realização se tornará mais firme. Neste estágio, os pensamentos terão perdido o poder de nos perturbar e de nos subjugar.
A vacuidade, a natureza última do Dharmakaya, o Corpo Absoluto, não é um simples “nada”. Ela possui, intrinsecamente, a faculdade de conhecer os fenômenos. Esta faculdade é o aspecto luminoso ou cognitivo do Sambhogakaya, cuja expressão é espontânea. O Sambhogakaya não é o produto de causas e condições; é a natureza original da mente.
O reconhecimento desta natureza primordial assemelha-se ao nascer do sol da sabedoria na noite da ignorância: a escuridão é dissipada instantaneamente. A claridade do Sambhogakaya não aumenta e diminui como a lua; é como a luz imutável que brilha no centro do sol.
Quando as nuvens se amontoam, a natureza do céu não é corrompida; e quando as nuvens se dispersam, ela não é melhorada. O céu não se torna menos ou mais vasto. Ele não muda. É o mesmo com a natureza da mente: ela não é deteriorada pela chegada dos pensamentos, nem melhorada pelo desaparecimento deles.
A natureza da mente é a vacuidade; sua expressão é a claridade. Estes dois aspectos são, essencialmente, um único aspecto – simples imagens projetadas para indicar as diversas modalidades da mente. Seria inútil se apegar em torno da noção de “vacuidade” e então da “claridade”, como se fossem entidades independentes. A natureza última da mente está além de todos os conceitos, de toda definição e de toda fragmentação.
“Eu poderia caminhar sobre as nuvens!”, diz uma criança. Mas se ela alcançasse as nuvens, não encontraria lugar algum para colocar seus pés. Igualmente, se não examinarmos os pensamentos, eles apresentam uma aparente solidez; mas se os examinarmos, nada encontramos. Isso é o que se chama ser, ao mesmo tempo, vazio e aparente.
A vacuidade da mente não é o nada, nem um estado de entorpecimento, pois ela possui, por sua própria natureza, uma faculdade luminosa de conhecimento (Sambhogakaya), que é chamada de consciência, ou consciência iluminada. Estes dois aspectos, a Vacuidade e a Consciência, não podem ser separados. Eles são essencialmente um, como a superfície do espelho e as imagens que são refletidas nela.
Os pensamentos se manifestam dentro da vacuidade e são reabsorvidos nela, assim como um rosto que aparece e desaparece em um espelho; o rosto nunca esteve no espelho, e quando cessa o reflexo, ele não deixa de existir realmente. O próprio espelho nunca mudou. Assim, antes de entrarmos no caminho espiritual, permanecemos no assim chamado estado “impuro” do samsara, que é, aparentemente, governado pela ignorância. Quando nos comprometemos nesse caminho, cruzamos por um estado onde a ignorância e a sabedoria estão misturadas. Ao final, no momento da Iluminação, apenas o conhecimento puro existe, mas ao longo do caminho desta jornada espiritual, apesar de aparentemente existir uma transformação, a natureza da mente nunca mudou: ela não era corrompida ao entrar no caminho e não foi melhorada na hora da realização.
As qualidades infinitas e inexprimíveis do conhecimento primordial – o verdadeiro nirvana – são inerentes à nossa mente. Não é necessário criá-las, fabricar algo novo. A realização espiritual serve apenas para revelá-las através da purificação, que é o próprio caminho. Finalmente, se considerarmos do ponto de vista último, estas qualidades são, por si mesmas, apenas o vazio. Assim, o samsara é vacuidade, o nirvana é vacuidade – e, conseqüentemente, um não é “mal” e nem o outro é “bom”. Quem realizou a natureza da mente fica livre do impulso de rejeitar o samsara e de obter o nirvana. É como uma criança que contempla o mundo com uma simplicidade inocente, sem conceitos de beleza ou feiúra, de bem ou mal. Ele não é mais vítima de tendências conflitantes, a fonte dos desejos ou aversões.
De nada serve preocupar-se com os rompimentos da vida diária, como uma criança que se alegra ao construir um castelo de areia e que chora quando ele desmorona. Veja como os seres pueris se jogam nas dificuldades, como uma borboleta que mergulha na chama de um lampião, para se apropriarem do que desejam e se libertarem do que odeiam. É melhor deixar o fardo, que todos estes apegos imaginários trazem, do que suportá-lo em cima de nós.
O estado de Buda contém, em si mesmo, cinco “corpos” ou aspectos do estado búdico: o Corpo Manifesto, o Corpo do Êxtase Perfeito, o Corpo Absoluto, o Corpo Essencial e o Imutável Corpo de Diamante. Eles não devem ser buscados fora de nós: eles são inseparáveis do nosso ser, de nossa mente. Assim que tenhamos reconhecido esta presença, há um fim para a confusão. Não teremos mais qualquer necessidade de buscar a Iluminação a partir de fora. O navegante que aportou em uma ilha feita inteiramente de ouro puro não irá encontrar uma simples pedra, não importa o quanto procure. Devemos entender que todas as qualidades do Buda sempre existiram inerentemente em nosso ser.