Ontem Steve veio me visitar em companhia de seu filho Tony. (...) usa mesmo um bocado de gíria que aprende nas ruas. Criança aqui é educada de forma tão diferente do que em nosso país! Aqui os pais vêem a liberdade como necessária para o desenvolvimento da criança. Durante as duas horas em que conversou comigo, Steve teve que manter sua atenção voltada para Tony que, sempre brincando, tagarelando, interrompia-nos a cada momento, tornando impossível nossa conversação. Dei a Tony diversos livros infantis, mas ele mal examinava as figuras deixava-as de lado e voltava logo a nos interromper. Ele exige constante atenção dos adultos.
A uma certa altura, Tony vestiu sua jaqueta e foi para fora brincar com o filho do vizinho. Perguntei, então, a Steve: "Você acha fácil levar vida de família?" (...)
Steve contou que não tem dormido direito nas últimas semanas que Ann, por estar cansada de cuidar do bebê durante o dia, chama-o várias vezes de noite para verificar de o bebê está respirando (...)
Fiz-lhe outra pergunta: "Muita gente diz que, com a família, a pessoa está menos só e mais segura. É verdade?" (...)
Disse: "Eu descobri um jeito de ter muito mais tempo. Antes, eu encarava o tempo como se fosse dividido em várias partes. Uma parte reservada para Tony, ajudando-o nos trabalhos escolares, lendo estórias ou dando-lhe banho, outra para Ann, ajudando-a a cuidar do bebê, indo ao mercado, levando a roupa para a lavanderia ou conversando com ela quando as crianças já estavam na cama. Eu ainda vejo Ann e Zoé como uma pessoa só, porque a respiração de Zoé é a respiração de Ann e, se uma das duas parasse de respirar, a outra também pararia. O tempo que sobrava eu considerava meu. E aproveitava para ler, escrever, fazer alguma pesquisa ou sair para uma caminhada. Mas agora, procuro não dividir mais o tempo em partes. O tempo gasto com Tony e Ann também é meu. Quando ajudo Tony num exercício escolar, tiro da cabeça a idéia de que 'este tempo é o tempo reservado para Tony, mais tarde terei um tempo para mim mesmo'. Entro então na lição com ele, compartilho de sua presença, ponho todo empenho naquilo que estamos fazendo naquele momento, de forma que o tempo dele se torna meu tempo também. O mesmo tenho feito com Ann. O curioso é que, com isso, o tempo que tenho para mim agora é ilimitado."
Steve sorriu enquanto me fez essa revelação. Eu fiquei surpreso. Sabia que não fora através dos livros que ele aprendera isso. Fora algo que aprendera por si próprio na sua vida diária.
Nos últimos meses tenho me dedicado ao estudo do Sutra da Mente Desperta com um pequeno grupo nos sábados à tarde. Após minhas explicações, os jovens do grupo fazem perguntas sobre como aplicar os princípios do Sutra ao dia-a-dia. Embora nunca tenha comparecido a essas aulas, Steve alcançou por si mesmo o entendimento daquilo que o grupo vem descobrindo com o estudo do Sutra.
"Para Viver em Paz" - Thich Nhat Hanh - Editora Vozes - páginas 19 a 21.
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Há 10 anos