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terça-feira, 24 de agosto de 2010

O cão e o budismo

"DISCÍPULO: - Como posso encontrar a minha natureza de Buda?
MESTRE: - Tu não tens natureza de Buda.
DISCÍPULO: - E os cães?
MESTRE: - Eles, sim, eles têm natureza de Buda.
DISCÍPULO: - Então, por que não tenho natureza de Buda?
MESTRE: - Porque precisas perguntar.
Os cães não têm simplesmente a natureza de Buda: a sua própria natureza canina é a natureza de Buda. E o que os torna pequenos Mestres Zen peludos, salivantes, latidores, pedintes, brincalhões? Bem, há um koan, ou ditado budista, do mestre Zen Shunryu Suzuki, do século 20, que o resume sabiamente:
“Há algo de blasfêmia em dizer-se como o Budismo é perfeito como filosofia ou ensinamento se não se sabe o que realmente é.”
A nosso ver, Suzuki não poderia ter dito melhor. Nunca deveríamos presumir que presumimos saber. E menos ainda um cachorro. E é exatamente esta a pista do Cão Zen. Mesmo nos piores dias de cão, os cães sentam-se, param e abanam o rabo para expressar devoção, honestidade, lealdade, amor, compaixão e alegria – as mais puras qualidades Zen. Isso é tão visível quanto o focinho frio e úmido nas suas caras. Os cães vivem o momento presente. A cada minuto que começa ou acaba com o próximo osso, bola, migalha de pão ou até com o cheiro realmente desagradável que venham a farejar, os cães vivem a verdadeira alegria da vida. Certamente não foi obra do acaso terem sido os cães os primeiros animais a serem domesticados pelo ser humano e terem-lhes permanecido fiéis desde então. Talvez seja por isso que não duvidam que têm um espaço garantido na cama – milhares de anos de serviço os tornam merecedores de pelo menos uma boa noite de sono. E, depois de um cansativo dia de trabalho, aqueles olhos puros, meigos, de cachorrinho olhando para você com devoção canina, atiram longe o stress mais tenaz e o ânimo mais deprimido. E, quando o humor já está recobrado, fazem todo o possível para partilhar dessa felicidade – sobretudo se for a sua felicidade – com demonstrações de energia positiva, balançando o corpo e saltando de pura alegria. Talvez um único ano de vida de um cão valha por sete anos humanos porque eles não têm coisas inúteis a fervilhar nas suas mentes, assim como podem armazenar sete vezes mais amor num ano do que qualquer um de nós. Na categoria gosto-não-se-discute os cães ganham de longe. Quantas vezes já viu cães amando incondicionalmente os seus donos – mesmo quando são pessoas muito difíceis – de um modo que talvez o próprio Buda visse como um desafio a ser vencido? Talvez eles amem essas pessoas simplesmente porque são capazes disso e aceitem voluntariamente o dever do combate emocional, uma vez que sabem, assim como Buda sabia, que o ódio não se vence com o ódio, o ódio é conquistado pelo amor. Os cães fiéis ensinam os seus donos, mesmo aqueles que não são dignos de ser chamados de pessoas, a amar de novas e diferentes maneiras.Outro presente que trazem para nossas vidas é uma lição da arte de identificar o que é verdadeiramente importante – uma cesta à tarde num lugarzinho cheio de sol, uma relva num cálido dia de primavera ou um belo e longo passeio sem destino certo. Aprendemos a ter paciência quando tentamos ensiná-los a dominar a arte de sentar-se, ficar de pé ou ir buscar algo. Qualquer pessoa que tenha sido acordada ao amanhecer, com latidos pedindo um passeio, recebeu uma lição de dedicação altruísta, do tipo da que faz a si perguntar-se já tinha mesmo noção de quem é o Mestre nas relações homem-cão, invertida o tempo todo. Como bem disse Buda, de forma muito simples e profunda:
Controle seus sentidos,
O que você prova e cheira,
O que vê, o que ouve.
Em tudo, seja o Mestre do que faz, diz e pensa.
Seja livre.
Os cães não sabem falar e, convenhamos, certamente não têm as papilas gustativas mais refinadas do reino animal (eles deixam isto para a dengosa turma felina), mas estão sempre demonstrando um domínio dos próprios sentidos. Certamente seus aguçados focinhos conseguem não só desenterrar o osso velho, ora pronto para uso, que haviam enterrado sob a sua roseira predileta um ano e meio atrás, como também conseguem farejar a sinceridade e a ternura nos seres humanos. E, a partir do momento em que conseguimos ver claramente por onde seus focinhos passaram, os cães mostram-nos como descobrir o melhor de nós mesmos. Usam seu refinadíssimo olfato de forma miraculosa, seja para avisar famílias sobre incêndios no meio da noite, seja para localizar nódulos cancerosos nas pessoas, utilizando seus focinhos extraordinariamente apurados para prevenir tragédias que os alarmes contra fogo e médicos experientes não conseguiram detectar. E é essa mesma sensibilidade que fareja carências numa pessoa quando uma gentil esfregadela do focinho ou uma lambidela tola no rosto oferece um bem-vindo e carinhoso toque de cómico alívio. Mesmo que as papilas do seu paladar possam não parecer refinadas, eles certamente têm seus petiscos favoritos – um biscoito crocante, deliciosos sapatos novos italianos ou, melhor ainda, a gostosa maciez de sua bola de tênis favorita. Quanto a gostar de pessoas, têm suas predileções, lembrando-se de algumas delas depois de anos sem vê-las ou mesmo viajando centenas de quilômetros para reunir-se aos seus amados humanos. Os cães vêem-nos como somos ou até mais profundamente; vêem-nos como podemos ser. A fidelidade de um cão ajuda-o a fechar os olhos para a fealdade das pessoas que o maltratam, vendo nelas apenas a beleza enquanto espera pacientemente que o seu lado melhor venha à tona. Se fôssemos suficientemente sábios para dar uma olhada nos espelhos da alma de um cão, veríamos que o amor ali reflectido está directamente voltado para nós. Todos já ouvimos falar da aguçada audição canina, já vimos suas orelhas ficarem em posição de alerta e perguntamo-nos o que estaria ele ouvindo. Seria alguma secreta estação de rádio canina que só eles conseguem sintonizar? Ouvimos constantemente histórias de cães heróicos que salvaram pessoas que gritavam por socorro; eles têm uma capacidade auditiva tão sutilmente sintonizada que só pode estar alocada nos seus corações. Contudo, sofrem de um problema de audição seletiva – palavras como saia e deite não são registradas do mesmo modo que vamos passear ou comida – ,
mas, venhamos e convenhamos, um cachorrinho não fica mesmo faminto mostrando-se tão dedicado o dia inteiro? E que lugar melhor para ficar roendo vigorosamente um osso do que um confortável sofá? Quando os seus humanos chegam a casa, sentam-se e ouvem tintim por tintim tudo que aconteceu no trabalho, os suspiros abafados, jamais fazendo o outro sentir que ele preferiria estar ocupado com alguma outra coisa. Se
estão a pensar agora: “Mas quem é que fala com seus cachorros?”, pelo que sei, a resposta é bem simples: um bocado de gente. E por que não? Quem mais escuta dessa maneira? Os cães sempre se mostrarão bons
ouvintes, presumindo que você é realmente inocente. Mesmo que se prove o contrário, o seu cachorro nunca o deixará perceber que ele está entediado ou tem alguma queixa de você. De maneira absolutamente Zen, os cães incorporam um grau de fidelidade, constância e firmeza em relação a seus donos que, em geral, os discípulos Zen só aspiram conseguir em relação a seus Mestres. Os cães mostram-nos como é uma natureza
altruística; ajudam-nos a deixar de lado nossas tendências ao egoísmo e a preocupar-nos exclusivamente conosco para subir às alturas do compromisso e da dedicação, onde finalmente poderemos aprender a instalar-nos, e lá ficarmos firmemente comprometidos com nossas ideias espirituais. Podemos todos aprender a abster-nos de julgamentos com os nossos companheiros de quatro patas que nunca nos julgam pelas roupas que vestimos, pelo emprego que temos ou pela companhia que compartilhamos. Eles tratam a todos com a mesma generosidade de espírito, voltando sempre a merecer o título de Melhor Amigo do Homem. Cão Zen nasceu de um desejo de mostrar o puro e inalterável amor canino. Não só o dos mais doces, que são — tãããããão — engraçadinhos, mas o dos verdadeiros cães da raça McCoy, que são Zen de uma maneira que só eles sabem ser. Esperamos que, mesmo por alguns momentos, este livro, mais do que um tributo aos peludos pequenos Mestres Zen, nos ajude a dar uma boa olhada sobre nós mesmos pelo espelho da honestidade, lealdade, dedicação e espírito surpreendentemente puro dos cães. Quando encontro um cão claramente em sintonia com a sua própria natureza, olho-o bem nos olhos e faço a seguinte pergunta: “E então, o que fazes para ganhar a vida?” Inevitavelmente, qualquer um digno de sua raça tem a mesma resposta: “Eu sou apenas um cão.” E simplesmente entrega todo o seu coração ao que veio fazer aqui – servir a seus donos, ensinar-nos o que é o amor incondicional, dar-nos o presente de aprender a estar presente – ele cumpre sua missão de cão como um verdadeiro Mestre. Pois, no final das contas, a presteza da mente é que é a sabedoria. Observe uns olhinhos fixos no sanduíche que está a comer e logo ficará a saber que eles estão atentos e conscientes do fato de que, se fizerem aquele olhar de eu-um-pobre-coitado-faminto, naquele momento você poderá sucumbir. E, se acontecer que um biscoito caia no chão da sala de estar, você descobrirá que a sua desenvolvida mente Zen captou o fato, pois, antes que a chuva pare de cair, ele já terá conseguido ouvir um pássaro e perceber que o sol está a caminho. Mesmo deitado sob o sofá, conseguirá encontrar aquele biscoito que escapou da mão do seu dono."

Via e-mail da minha amiga Mariza Schmidt.