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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A bronca do Dalai Lama!


Sobre os ensinamentos do Dalai Lama às Sanghas e organizadores.
Este é o resumo das notas de tradução tomadas durante um encontro de Sua Santidade o Dalai Lama com as sanghas budistas e os membros da organização de sua visita ao Brasil, em maio de 2006, após encerradas suas atividades públicas no país. Como notas tomadas rapidamente, têm várias imprecisões e não é um relato completo de sua fala.
Os representantes das sanghas de São Paulo e de outras cidades do Brasil se reúnem no segundo andar do centro de convenções de um grande hotel na cidade. Há um largo corredor, bem comprido, e os presentes — talvez umas cento e oitenta pessoas ou mais — se reúnem em grupos de 30, para que seja possível fazer caber cada grupo em uma foto com o Dalai Lama. É quase hora de sua chegada, marcada para as 17:45, e várias sanghas cantam a oração de longa vida por Sua Santidade.
Ele surge pontualmente, com seus seguranças, que o acompanham por todos os países que visita, e também aqueles enviados pela polícia federal e militar. São vários, mais de dez, caminhando em torno dele, que se dirige mais ou menos para o meio do corredor e parai para perto de uma mesa de bufê, ao meu lado direito. Vou traduzi-lo do inglês, e ocasionalmente ele falará em tibetano. Para esse caso, à minha esquerda há outro tradutor, tibetano-inglês, que falará baixinho, em meu ouvido, o significado a ser traduzido para o português.
A aclamação é geral. Totalmente à vontade, o Dalai Lama apóia-se na mesa, sem se sentar na cadeira reservada a ele, e começa, de pé, a falar para os budistas e não-budistas que trabalharam na organização da sua visita ao país, essas pessoas todas, pertencentes a diversos centros budistas, centros filosóficos, equipes de filmagem, produção e divulgação, assessores de imprensa, etc. Mas a mensagem será mesmo dirigida principalmente aos budistas— vários deles já ordenados monges, ou sagrados lamas ou mestres... estou ao seu lado e cabe-me traduzir o que ele dirá. Terei que falar bem alto, para que todos possam me ouvir, até o final do corredor numa e outra direção. Sinto uma energia enorme, e apesar do momento exigir atenção e concentração, estou completamente tranqüilo, como sempre me sinto quando estou em sua presença. Demora um pouco até que cessem as palmas e mantras com que as pessoas o recebem... Ele pede então aos seguranças que se afastem, abrindo o caminho para que todos possam vê-lo, mesmo os que estão mais longe, e os homens de terno escuro diluem-se entre os presentes.
O Dalai Lama começa agradecendo a todos pelos esforços realizados para que ele esteja ali, conosco. Diz que vários já devem ter alguma familiaridade com o budismo, por estarem fazendo a prece pela sua longa vida. Está com a expressão tranqüila, mais para serena do que para sorridente. Está cansado, provavelmente, após um dia em que mal teve tempo de almoçar devido à quantidade de compromissos, entrevistas e palestras agendados para ele.
Entra então rapidamente no primeiro tema de sua fala: “outro dia, em nosso encontro no templo chinês [uma sessão de ensinamentos para o público budista realizada dois dias antes no Templo Zulai, em Cotia], em nossa sessão sobre o budismo, vi, naquele dia tão bonito, muitas pessoas com uma variedade enorme de roupas. Havia roupas do budismo zen japonês, roupas do budismo tibetano, roupas de monges tibetanos, roupas de monges de outras nacionalidades, roupas que eu nem sei quais eram... talvez roupas de outro planeta!” (risos gerais).
Sua expressão se altera um pouco. Sério, olha para baixo, como se estivesse procurando as palavras certas... os outros presentes estão absolutamente encantados com ele, inclusive os seguranças.
“Sou um pouco crítico quanto aos ocidentais que entram em contato com as tradições orientais, como por exemplo a budista, e começam a mudar seus hábitos exteriores. Primeiro, abandonam suas tradições de origem. Depois, mudam suas roupas, vestindo-se como os orientais se vestem. Em seguida, mudam os móveis de sua casa. Mudam seu comportamento, mudam seus gestos...
Vemos ocidentais que abraçam por exemplo o sikkismo, ou tornam-se hare krishnas, e de repente saem as ruas com o cabelo raspado, as vestes laranja no estilo oriental... acho que isso não é bom.”
O Dalai Lama diz que o Dharma não está nas roupas, não está no comportamento exterior, nos móveis... “prefiro pessoas que conservem suas tradições de origem e aprendam o que podem aprender com o budismo, aplicando suas novas descobertas dentro de sua maneira cultural própria. O budismo não está nas regras monásticas nem na aparência. Olhem para o nosso mestre, Buda Shakyamuni. Ele criou um conjunto de regras a serem seguidas, mas seu grande ensinamento está em conhecermos a nossa própria mente!
Talvez o que faz do budismo um caso quase único é que ele procura usar ao máximo a inteligência humana para transformar as emoções. E essa transformação não acontece através de preces, através de uma meditação unidirecionada. Não adianta fazer preces para os budas (o Dalai Lama faz um gesto unindo suas mãos e olhando para o alto) e ficar esperando que ocorra uma transformação mágica em suas emoções. Você pode fazer cem mil mantras om mani peme hum, fazer todo esse esforço, e achar que com isso já deve estar transformado, mas a mudança nesse caso só vai ocorrer se por acaso acontecer um milagre...”
A voz do Dalai Lama é cada vez mais forte, e seus gestos começam a adquirir expressividade. Se antes ele estava cansado, começo agora a sentir nele um vigor e energia extraordinários. Ele parece ter achado algo muito importante a dizer para os seguidores do budismo, e vai dizê-lo sem perder uma palavra sequer. O envolvimento é entre os presentes é ainda maior, e o silêncio é absoluto.
“A transformação demora para acontecer. Demanda muito esforço. O próprio Buda Shakyamuni demorou três eras inteiras para transformar suas emoções. Não vai ser fazendo alguns mantras que você acha que sua vida vai mudar totalmente! Eu tenho mais de setenta anos, quase setenta e um. Comecei a interessar-me realmente pelo BuddhaDharma quando tinha dezesseis anos, e só agora, talvez, minha mente esteja se tornando um pouco mais estável...
De nada adianta você fazer um retiro tradicional de três anos, três meses e três dias. Pode ser até que a sua mente, ao longo desse tempo, em vez de melhorar, piore... a única coisa certa que se pode dizer é que, depois desse tempo todo, seu cabelo vai crescer!” (risos gerais, mas um pouco contidos, porque a audiência percebe que o assunto é sério, e o puxão de orelha só começou...).
“O desenvolvimento e a transformação da mente requer muito esforço. Mas perceba aqui também que o esforço cego de nada adianta: ele tem que ser acompanhado pela sabedoria. Novamente, podemos orar para Buda, para Tara, Avalokiteshvara, fazer uma sadana... mas só há uma chance em um milhão de que isso baste para a sua transformação: se ocorrer um milagre. De outra forma, será realmente difícil atingir a mudança desejada.
Uma vez um aluno perguntou a um grande mestre tibetano do início do século vinte se deveria fazer um retiro de Manjushri de um mês, para melhorar a acuidade de suas percepções mentais. Esse mestre respondeu ao aluno que se ele fizesse o retiro, talvez houvesse alguma mudança; mas que se ele ocupasse esse mês estudando seriamente, era certo que sua mente iria mudar. Isto é MUITO importante.
Estudar é crucial. Já estamos trabalhando para que mais livros sobre o budismo tibetano sejam publicados na língua de vocês. Minha recomendação é: ESTUDEM! Estudem muito. Estudem e produzam textos, pequenos panfletos; não para venda, não para comércio, mas para fazer circular entre vocês. Leiam, discutam em pequenos grupos, escrevam e façam suas idéias circular entre todos do grupo maior. Estudar e discutir é essencial. É irreal ficar esperando que venha um lama, uma vez por ano, fazer um workshop com ele e um monte de iniciações, e depois nada mais, e esperar alguma transformação em sua mente. Isso não é suficiente. É necessário estudar regularmente. Ocasionalmente, se você se encontra com algum bom professor, e passa com ele uma ou duas semanas fazendo workshops, é ótimo, mas depois volte ao seu estudo regular e sistemático.”
Os presentes estão completamente atentos. O Dalai Lama chama a atenção de seus irmãos budistas: menos automatismo, mais reflexão, mais consciência! É um momento grave, e a mensagem é passada de maneira clara e inequívoca. Não há como fugir.
“Mas há um pequeno problema. No mundo de hoje, há vários “businessmen” que, visando obter dinheiro, dão ensinamentos religiosos. Isso acontece cada vez mais freqüentemente; ocorre muito na China, que importa “mestres” tibetanos, mas também no resto do mundo. Esses não são mestres genuínos. Apresentam-se como grandes mestres, mas não são. Seu propósito é unicamente o de obter dinheiro.
Uma vez, um senhor chinês se aproximou de mim e colocou-me esse problema. “Dalai Lama, faça algo por favor para conter esse fenômeno, esses falsos mestres”. Eu lhe disse que não há nada que eu possa fazer! A única coisa que pode funcionar é que, do lado do aluno, haja consciência de quais são as qualificações de um mestre verdadeiro, de um professor autêntico, e ele examine se a pessoa em questão as possui ou não possui. Isso é MUITO importante. Eu, por exemplo. Examinem-me, se como professor, eu tenho as qualidades necessárias! Eu também tenho que ser submetido a um exame!”
O Dalai Lama está completamente cheio de energia e vigor em suas palavras. Percebe-se que o assunto é de total importância, e ele realmente quer que todos entendam a importância do estudo e do empenho individual em transformar a mente, não de um modo mecânico, mas através da reflexão consciente.
Antes que eu acabasse de traduzir sua última fala, a mais longa, ele gentilmente me interrompe, mudando o rumo do seu pronunciamento.
“Mais uma coisa. Como eu já disse, meu terceiro compromisso é para com a causa tibetana, a nação tibetana. [O primeiro é com os valores humanos, e o segundo com a harmonia inter-religiosa.] O Tibet tem uma história muito longa, uma herança cultural viva e muito rica, e tem também sua própria escrita. Tudo isso tem mais de mil anos, tempo em que a tradição NALANDA do budismo foi mantida viva, nas regiões geladas das montanhas — como congelada num freezer. As tradições indianas sofreram muitos danos, mas a tibetana foi mantida intacta esse tempo todo. Há achados arqueológicos que atestam quanto tempo tem a cultura tibetana ancestral: mais de trinta mil anos!
Mas este cenário belíssimo, com as montanhas elevadas, traz também o quadro trágico: o de uma nação que está morrendo. Ainda não somos como o povo inca, que morreu totalmente, mas estamos morrendo. Ainda lutamos para sobreviver, mas se a situação presente se mantiver, a cultura tibetana e a nação tibetana perecerão, como aconteceu no caso dos incas. Neste momento, já está claro para todos que a cultura tibetana em sua forma pura já não existe no território tibetano — só existe na Índia, entre as comunidades no exílio.
O Tibet luta pela sua sobrevivência, buscando uma liberdade limitada; não apenas política, mas cultural. Se a luta pelo Tibet fosse unicamente uma questão política, eu, que no fundo sou um monge budista, não a teria abraçado. Se o fiz, é porque envolve a sobrevivência de nossa cultura, de nossa tradição, de nossa língua. Portanto, essa luta pela liberdade limitada, uma luta democrática pela preservação da cultura ancestral tibetana, de sua rica tradição — se ela é assim, considero que minha atuação nesse sentido é parte da minha prática espiritual.
É claro que nossa cultura ancestral, se comparada com o desenvolvimento das culturas contemporâneas, podia ser considerada atrasada em muitos aspectos. Assim, o Tibet pode beneficiar-se de estar sob a China, se houver modernização e progresso material.
A constituição chinesa prevê direitos próprios às diferentes etnias. Mas desde a ocupação, houve apenas um acordo entre o Governo Tibetano e o Governo Central da China envolvendo a preservação desses direitos; era um acordo para a liberação pacífica do Tibet, assinado na década de 50, e que nunca foi cumprido. Ainda nessa década, a própria ONU emitiu várias resoluções em que considerava o Tibet um caso especial; o governo chinês reconheceu esses acordos, na ocasião, mas também nunca os cumpriu. Fui a vários encontros com o “Camarada Mao”, mas isso não deu em nada...”
O Dalai Lama parece encher-se de lembranças, e sorri um pouco.
“Fiz muitos encontros, naquela época... provavelmente, em 1957, muitos de vocês não tinham nem nascido! Você, já era nascido? E você? Pois bem... naquele tempo eu era jovem, e fiquei enormemente atraído pelo “movimento revolucionário”. Acho que eu era, como dizer, um sujeito considerado... como dizer... perigoso: meio marxista, meio budista! [risos gerais]. O que acho do marxismo? acho que ele não é nem bom nem ruim. Minha impressão é de que o marxismo original tinha uma série de pontos muito interessantes, muito bons. Mas depois, quando se tornou apenas parte de um poder político e nacionalista, tudo isso se perdeu. Hoje, para mim, a China não tem mais qualquer conteúdo: não é mais ideológica. É apenas autoritária.
Assim, faço a todos meu pedido: a nação tibetana está morrendo — ajudem-nos, de todas as maneiras que puderem...
Meus amigos, meus irmãos e irmãs: agradeço enormemente seu interesse e seu envolvimento de coração com a cultura tibetana. Muito obrigado a todos!!!
O Dalai Lama, é longamente ovacionado. Enquanto traduzo sua fala final, vai a cada um dos grupos, e senta-se no meio das pessoas enquanto os fotógrafos, vários, procuram registrar o momento. Depois, acenando para todos, caminha até o fim do corredor, desaparecendo em direção aos seus aposentos...
Créditos para Arnaldo Bassoli, membro do Comite Brasileiro de Apoio ao Tibet e do Colegiado Budista Brasileiro, que fez a tradução para o português e redigiu este relato.