Se você é uma ou um praticante budista, tem um filho pequeno e, depois da conversão, anda com medo do que o pimpolho anda vendo pela TV, jogando na escola, se influenciando por aí, saiba que nem só de inferno vive a mídia.
Esses tais tempos de degenerescência têm esse nome complicado porque é assim que o mundo está, dizem. Como tudo que nasce um dia vai declinar, não seria diferente com o Darma. Ele nasceu e vai se extinguir.
E os “sinais dos tempos”, como dizem os profetas, são esse mundo de influências que nos rodeia e nos faz de marionetes, pipocando pra lá e pra cá, coçando a cabeça diante de um monastério, sorrindo prum méquidonaldis, sentando a bunda numa choupana na beira de um penhasco himalaio e batendo uma bolinha com os amigos, como se tudo fosse a mesma degenerada e feliz coisa.
Bom, por um lado, é mesmo. Para a visão última, para a natureza búdica, para a tradição Dzogchen nada escapa do fio da natureza primordial. Logo, em última análise (última mesmo), não há nada errado com o mundo e Buda está inclusive na carne de minhoca que você come todo dia depois de pagar no mínimo cinco pilas no draivetru. Mas o próprio Guru Rinpoche nos alerta sobre o risco de tomarmos isso como desculpa para não praticar. Em outras palavras: tudo já é, mas você está vendo que é?
Bom, mas o que acontece nesses tais tempos de degenerescência é que tanto coisas positivas quanto negativas, tanto caminhos para a iluminação quanto iscas do samsara, vem no mesmo balaio.
A prática é gerar o olho que sabe filtrar essas coisas para poder pescar as mais tenras e puras. Estou longe de ter desenvolvido esse olho, mas suspeito que uma das coisas boas, ou seja, com forte potencial de mostrar o caminho que pode nos conduzir à liberação, ou, para usar o jargão cebbiano, um bom meio hábil que está sendo transmitido (ora vejam!) pela Rede Globo de Televisão (um dos mais potentes balaios que tudo transmite, comparável ao Império Romano, que aceitava todas as religiões como estratégia de dominação) é um desenho animado chamado Avatar: a lenda de Aang (Avatar: The Legend of Aang).
Na verdade, ele é de propriedade da Nickelodeon e pode ser baixado na íntegra no site Mundo Avatar. Na TV Globinho ele passa com cortes por causa do curto horário e já está na terceira temporada. Vale a pena entrar no site e ver desde o primeiro episódio para acompanhar bem a saga de Aang.
Há muito tempo as nações viviam em paz e harmonia. Os quatro elementos conviviam tranquilamente. Mas tudo se desequilibrou quando a Nação do Fogo resolveu atacar. O Avatar domina os quatro elementos e é o único que pode restabelecer a ordem. Contudo, devido a crises naturais que brotam quando um ser é diferenciado dos demais, ele se isolou e permaneceu congelado por 100 anos. Quando ele retorna, encontrado por um casal de irmãos (uma bela dupla Espírito/Carne; Feminino/Masculino; Coragem/Medo; Determinação/Preguiça; Katara/Sokka) o planeta está mergulhado em guerra. A primeira temporada inteira conta a viagem dos três rumo ao Pólo Norte.
Os detalhes peculiares e interessantes estão, por exemplo, no paralelo AvatarTulku. Ou seja, o Avatar também é uma reencarnação de um Avatar anterior, chamado Roko. Ele aparece para o menino, apontando caminhos, buscando encorajá-lo, mostrando que, na verdade, eles são a mesma pessoa.
Também o Avatar é reconhecido através de testes muito parecidos com aqueles que se fazem para localizar os grandes mestres reencarnados. E isso acontece num monastério, onde Aang convive com centenas de outros mongezinhos que brincam e se divertem, numa espécie de reprodução dos cenários que vemos em filmes como "A Copa" e "Samsara".
Também é muito interessante ver como, apesar de ele ser um Avatar reconhecido, ele precisa treinar como todos os mestres budistas. Nesse aprendizado, ele se mostra incrivelmente humano e tipicamente infantil (não infantilóide), o que o aproxima muito do público telespectador: fica irritável quando não consegue aprender logo, não tem muita paciência pra meditar, uma das exigências de um dos mestres dele. Ao mesmo tempo, a exemplo do próprio Buda, mostra-se surpreendentemente hábil, como se todo aquele conhecimento já estivesse presente desde sempre dentro dele.
Dois dos episódios mais significativos da primeira temporada (a única a que assisti até agora): em um deles, Aang precisa pacificar um espírito da floresta. É hilário e encantador ver que ele não tenta fazer isso através da força, mas busca conversar com o espírito, amigavelmente, de acordo com a sua tarefa como Avatar (e como bodisatva?). Ao fim, meio sem saber como, ele faz a ponte entre o mundo espiritual e o terreno, num claro exemplo de xamanismo, o que nos remete à noção budista de que estamos constantemente vivendo em bordos, ou seja, num limiar tênue em relação à verdade última. Rituais budistas como o Sur (Puja do Fogo) são ótimos exemplos dessa tentativa de conexão. O outro episódio se chama “A Grande Divisão” e nada mais é do que a atividade incessante de um bodisatva. Duas tribos – claramente Reino dos Deuses e Reino dos Infernos ou Fantasmas Famintos – que se odeiam precisam atravessar uma encosta lado a lado e Aang deverá ser o mediador dos conflitos que surgirão. Conflitos esses que se iniciaram por um grave mal-entendido, ou de acordo com a designação do próprio Avatar (não vou contar pra não perder a graça). O mágico é: a mente construindo mundos.
Um outro detalhe muito interessante é que, mesmo que haja um vilão (ou mais de um), como todo desenho de aventura que se preze deve ter, há um esforço em mostrar o lado humano e as motivações que levam, no caso, por exemplo, o príncipe Zucco a caçar tão desesperadamente o Avatar. Há até um ensaio de amizade entre os dois. O que contribui para isso é justamente a questão dos elementos, ou seja, todos os elementos convivem em paz. A vida na Terra é harmoniosa se os elementos estão equilibrados. Não é um inimigo que resolve dominar, mas um desequilíbrio que acontece naturalmente, como quando há uma enchente ou uma fileira de casas é queimada.
Na dúvida, resolvi fazer o teste com um primo meu, chamado Gabriel, de 9 anos. Ele iniciou a conversa acusando a Nação do Fogo de ser “do mal”, mas diante de alguns episódios e alguma conversa depois, ele logo estava vendo diferente. Aspiro que sigamos nesse diálogo e se possível postarei outros relatos da conversa aqui.
Não costumo ver tevê e tenho a tendência a refutar os excessos – às vezes caindo perigosamente no caminho do ouvinte/obedecente –, mas devo dizer que Avatar é uma boa recomendação. Nada passa despercebido e nenhum personagem parece estar aí por acaso. Eles vão se revelando aos poucos, mostrando suas funções e sempre, me parece, contribuindo para uma percepção lúcida da realidade. Esteja atento para o que vê. Esteja atento para o que seus filhos vêem. Aproveite para trocar uma ideia com eles de igual pra igual.
Mas deixe a liberdade operar. Mais cedo ou mais tarde, todos vamos nos liberar. Agora, quando podemos acelerar esse processo, é bom aproveitar. EMAHO!
Da revista "Bodisatva - Um Olhar Budista"
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